“A Medicina é uma profissão de compaixão. Os cuidados devem ser prestados com qualidade e humanidade”
Nomeado sócio honorário da APIC, Pedro Canas da Silva foi um dos fundadores da associação. Define-se como um workaholic. Trabalhou muito durante toda a vida, por gosto. Considera-se privilegiado. Diz que a Medicina é uma profissão “gratificante” e afirma que recebeu, e continua a receber, muito mais do que deu, mesmo já não exercendo medicina hospitalar.
Aos colegas pede que se lembrem que a Medicina é uma profissão de compaixão. “Os médicos devem ser compassivos” e assistir os doentes com “qualidade e humanidade”.
Quando é que percebeu que a Medicina seria o seu futuro?
Pedro Canas da Silva (PCS) – Talvez por volta dos 18 anos. Eventualmente, por alguns bons exemplos, o meu irmão mais velho e alguns tios também eram médicos. Achava-os pessoas muito interessantes e cultas.
O gosto pela Cardiologia quando é que surgiu?
PCS – Durante o curso.
E a área da Intervenção?
PCS – A Intervenção veio depois. Comecei a interessar-me pela área mesmo no seu início em Portugal. O Dr. Vasco da Gama Ribeiro, o Dr. Ricardo Seabra Gomes e o Dr. Jorge Quininha foram os grandes pioneiros das técnicas de Cardiologia de Intervenção em Portugal. Nessa altura, eu ainda estava a fazer a minha formação em Cardiologia geral e gostei. Pareceu-me um mundo fascinante, e, depois de começar a fazer, não mudei de ideias. É um mundo fascinante!
Lembra-se da primeira intervenção que fez?
PCS – Foi uma angioplastia, mas não valorizei, porque em Santa Maria já se fazia muito… Um dos primeiros casos importantes que fiz e que recordo foi o de uma Diretora de um Serviço do Hospital de Santa Maria, que deu entrada com um enfarte agudo, quase em choque. Fui fazer a angioplastia, mas tinha muita gente a assistir pelo postigo e a dizer que a senhora ia morrer. Felizmente não aconteceu nada, ficou ótima.
E isso causou-lhe nervosismo?
PCS – Sim. Na altura, causava muito nervosismo! Depois com o tempo e com a experiência, que é muito importante, ganhei confiança.
O que é para si ser médico?
PCS – Sempre fui workaholic. Passei a vida a trabalhar muito. Ser médico é algo muito gratificante. Sempre considerei que era um privilégio ter esta profissão e sempre recebi muito mais do que dei.
Agora, que mudei a minha perspetiva – porque passei de profissional de saúde, a “profissional da doença” – tenho, claramente, a noção de que estou a receber muito, mas mesmo muito, do que dei. Estou a receber imenso.
Estou a ser muito bem tratado por toda a gente, no hospital onde trabalhei. Até pelos doentes… É extraordinário!
Acima de tudo, ser médico é uma profissão de compaixão, de aliviar o sofrimento do outro, e isso é muito importante. Há quem se preocupe só com dados…
Neste momento, não faço medicina hospitalar, mas tenho o meu próprio consultório. Estive quase dois anos sem trabalhar e é impressionante ver a quantidade de doentes que estão a voltar! E voltam de outros sítios.
Criaram uma ligação…
PCS – … É brutal. Não é uma ligação só médico-doente. É doente-médico e médico-doente. Atenção que eu sou contra a dependência de doente-médico. Muito contra.
Sempre estive disponível para os meus doentes, independentemente dos dias e das horas. Sempre dei o meu número de telemóvel a todos. Alguns não me telefonavam para não me incomodarem!
Eu brincava, dizia que só lhes estava a dar o número para me poderem avisar, caso eu tivesse feito alguma coisa errada. Mas, mesmo assim, alguns não queriam ligar, sobretudo ao fim de semana.
A Medicina é um serviço. Os médicos prestam serviço às pessoas e têm de estar disponíveis todos os dias e a qualquer hora.
Formou-se pela Faculdade de Medicina de Lisboa e fez o internato geral e o internato da especialidade no Hospital de Santa Maria, onde ficou, tendo chegado a coordenador do Laboratório de Hemodinâmica. Que memórias guarda do seu início de carreira?
PCS – Para dizer a verdade, na altura, ser estudante de Medicina não era fácil. Primeiro, porque havia uma noção de pouco cumprimento por parte de quem nos ensinava; segundo, porque era pouco profissionalizado.
Tive três professores extraordinários. O Dr. Vítor Camilo e o Prof. Salomão Sequerra Amram, também diretor do serviço. O melhor diretor que tive. Trabalhei, durante cinco anos, na Medicina, com uma internista, a Dr.ª Maria José Metrass, que era extraordinária.
Foram as pessoas que mais me influenciaram enquanto formadores. Eu tentei retribuir, mais tarde, com os muitos jovens que ajudei a formar.
O que é que mais destaca deste seu percurso profissional?
PCS – A noção da evolução. Tive a sorte de assistir ao nascimento e crescimento da Cardiologia de Intervenção e à sua diferenciação progressiva.
A Imagiologia e a Cardiologia foram das especialidades que mais evoluíram na Medicina, nos últimos 20 anos. A Cardiologia, precisamente, pela possibilidade da imagem e de poder ser mais interventiva, mas com o cuidado de precaver os problemas.
Por outro lado, a indústria teve um papel importantíssimo na implementação das novas tecnologias e na formação dada aos profissionais. Foi tudo muito controlado.
Tive a sorte ser do grupo pertencente ao primeiro centro que começou a fazer, sistematicamente, angioplastia no enfarte agudo do miocárdio. Ia com o Dr. Joaquim Oliveira desentupir artérias. Era uma sensação indiscritível! Até porque, naquela altura, mudou-se por completo o prognóstico do enfarte. Foi fabuloso.
Há algum caso ou casos mais difíceis, que mais o tenham marcado?
PCS – Muitos. Uns pela positiva, outros pela negativa. Eu costumo dizer, na brincadeira, que o melhor é ter uma memória muito seletiva, que nos deixe ficar com os casos bons e, convenientemente, esqueça os maus. Infelizmente também há maus!
Estou a lembrar-me do caso de uma senhora com um enfarte. Foi há muitos anos. Eu estava na reunião do grupo de estudos, que deu origem à APIC, e tive de vir de Coimbra para Lisboa, com outro colega, para tratar a senhora. Viemos os dois médicos mais novos, porque os mais velhos ainda estavam a terminar umas coisas. Fizemos o caminho “a abrir”, em 40 minutos.
Quando chegámos a Santa Maria, abrimos a artéria e tratamos a senhora, mas depois, à custa de um problema com um medicamento, a artéria voltou a entupir. Voltámos a desentupir, mas a senhora não ficou bem…
Mas, tenho muitos casos que correram muito bem. Sem falsa modéstia, nos últimos anos, eu fazia muito bem angioplastia coronária. Porém, quando comecei a fazer estrutural também gostei muito e achei fantástico.
Antes de fazer Cardiologia de Intervenção, fiz muito pacing cardíaco e formei muita gente nessa área. Não deixa de ser curioso que fiz as três técnicas que mais salvam vidas em Cardiologia: o pacing, a intervenção coronária e, agora, a estrutural.
Tenho a noção que vivi várias fases da história e que ensinei muito bons profissionais, que, hoje em dia, trabalham em outros hospitais, em várias partes do país e do mundo. Ensinar também é aprender.
Como foi a experiência de coordenar a Hemodinâmica de um dos maiores hospitais nacionais?
PCS – Foi muito gratificante. Claro, também tive dias menos bons, mas tive sempre uma equipa espetacular. Estou a falar de todos os profissionais: enfermeiros, técnicos, médicos. Eram todos extraordinários!
Gente muito dotada. E não é fácil lidar com pessoas muito dotadas, porque são muito exigentes. Mas, adorei e posso dizer que o que dei em um, recebi em 10.
Ainda agora, que já não trabalho na área, me convidam para ser advisory board. Não aceito, porque sinto que já não faço parte do meio. Mas, os meus colegas fazem questão de manter o contacto, almoçamos ou jantamos fora, pelo menos, duas vezes por mês. Era uma equipa com ótimas relações. Deixa saudades, mas faz parte da vida. Uns ficam, outros vão.
Tentei sempre formar pessoas diferenciadas. Todos sabiam fazer coronárias, mas todos se especializavam, depois, em outras áreas à sua escolha.
Deixei médicos jovens muito bons no Hospital de Santa Maria e, tenho a certeza, estão a fazer o seu melhor.
Nunca foi penoso chefiar a unidade. Gostava muito de trabalhar na hemodinâmica do Hospital de Santa Maria e teria continuado a fazê-lo se não considerasse que se poderiam correr riscos excessivos. Não para mim, porque os meus riscos… Mas, para os doentes. Temos de ter noção das nossas capacidades.
É casado e tem filhos. Qual foi o papel da família ao longo do seu percurso profissional?
PCS – Sou casadíssimo, há várias décadas, e tenho dois filhos, uma rapariga e um rapaz. Ela é de Engenharia Civil, mas não exerce, e ele é de Relações Internacionais, mas também não exerce! Trabalham os dois na Jerónimo Martins. Ela numa área especial de Recursos Humanos, ele é diretor comercial do Pingo Doce.
A minha mulher também já está reformada. Era médica de Clínica Geral, sempre entendeu muito bem o meu trabalho e sempre ajudou. Foi ótima! Foi uma mãe fantástica! Sempre teve essa disponibilidade, tornando tudo mais fácil.
Mas, apesar de tudo, sempre tentei ser um pai presente. Provavelmente, poderia ter sido mais, mas eles tiveram uma mãe que lhes deu sempre muito, mesmo trabalhando 12 horas no centro de saúde.
Agora sou um avô absolutamente babado! Tenho quatro rapazes, com sete, três e um anos. O mais pequeno tem um mês e meio. Os da minha filha têm uns olhos azuis lindos, os do meu filho são loirinhos! São muito giros. Divirto-me imenso com eles.
Quando somos pais usufruímos pouco dos nossos filhos, porque estamos preocupados com a educação. Eu já só preciso de estar com os meus netos.
Já falou há pouco da evolução da Cardiologia de Intervenção, que foi grande. Quais considera serem os maiores desafios atuais e futuros da Cardiologia de Intervenção?
PCS – Tratar melhor as coronárias. Melhorámos muito, mas ainda estamos longe da perfeição. Neste momento, a indústria farmacêutica investe, sobretudo, no cancro e nas demências.
A Cardiologia de Intervenção vai ter um futuro radioso, mas muito baseado na robótica, que está a atingir, cada vez, mais áreas. Muita dessa robótica vai diminuir o erro humano, porque os robôs não tremem e porque podem ser controlados de milhares de formas diferentes. É algo que vai evoluir muito: a robotização da Medicina.
Foi nomeado sócio honorário da APIC. O que é que esta distinção significa para si?
PCS – Fui um dos fundadores da APIC, juntamente com o Prof. Lino Patrício. Fomos os dois últimos coordenadores do, na altura, Grupo de Estudos de Hemodinâmica e Cardiologia de Intervenção (GEHCI). O Prof. Lino Patrício no biénio de 2004/2006, eu no de 2007/2009.
Foi numa conversa entre os dois que surgiu a ideia de tornar o grupo de estudos numa associação. Considerámos que já tínhamos um número de pessoas e relevância suficientes, para termos direito a ter uma relação melhor com a Sociedade Portuguesa de Cardiologia.
Considero que este reconhecimento, se deve ao facto de ter sido um dos fundadores da Associação. Depois disso, também fui eu que consegui a Assembleia-Geral da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, para se fundar a APIC. Conversei com o Prof. Hugo Madeira acerca da criação da Associação, porque nenhum dos presidentes anteriores esteve de acordo.
Depois disso, considero que o Dr. Rui Campante Teles foi um bom presidente da APIC e fez um trabalho que foi muito ao encontro daquilo que eu e o Prof. Lino tínhamos pensado, na altura da fundação da APIC.
Tenho boas relações com a maior parte das pessoas do meio. Tenho tido uma vida profissional cheia. Trabalhei muito, mas não me cansei, porque quem trabalha por gosto não se cansa, e divertia-me a trabalhar.
Contava anedotas aos doentes, enquanto estava a fazer as intervenções. Eles chegavam muito nervosos e eu brincava para os descontrair. Ficavam logo mais bem-dispostos!
Agora, lembrei-me de uma história engraçada: fiz uma angioplastia a uma senhora, às 24h00 da noite de Natal. Fui para o hospital na altura de abrir os presentes! Passei a chamar a senhora de “a minha prendinha de Natal”! É engraçado.
Como disse no início da entrevista, é uma profissão muito compensadora. Poder aliviar a dor e o sofrimento é belíssimo!
Que conselhos deixa às novas gerações de médicos?
PCS – Que não sejam muito arrogantes. As pessoas têm uma grande tendência para a arrogância. São pessoas exigentes, sabem que são bons médicos, e tornam-se ainda piores. Mas lembrem-se, a Medicina é uma profissão de compaixão e que têm de ser compassivos. Não é fazer paliativos é ser compassivos, que é muito diferente.
A tendência é seguir as guidelines. Sempre fui a favor da Medicina baseada na evidência, mas também é preciso ver o outro lado da questão e perceber as pessoas.
E que mensagem deixa aos colegas especialistas?
PCS – A mesma. Vai continuar a haver progresso, mas os cuidados devem ser prestados com qualidade e humanidade.